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sábado, 26 de outubro de 2013

A medicina se desumanizou", diz Aldo Castañeda
(Ronaldo Bernardi/Agencia RBS)

Carlos Guilherme Ferreira | carlos.ferreira@zerohora.com.br

Aldo Castañeda carrega na fala mansa e nos gestos pausados a experiência de quem se tornou, em 50 anos de carreira, referência mundial em cirurgia cardíaca infantil.

Ex-chefe do Hospital da Criança de Boston e da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, dedica-se hoje à fundação que leva seu nome, na Guatemala. Trocou a aposentadoria confortável pelo trabalho gratuito para diagnosticar e operar crianças pobres com malformações cardíacas. O médico arregala os olhos ao revelar as estatísticas: enquanto em Boston o diagnóstico de crianças com este tipo de problema chega a 98% dos casos, na Guatemala patina em 26%.

Aos 83 anos, Castañeda veio ao Estado para palestrar em um congresso na Serra e no Hospital da Criança Santo Antônio, da Santa Casa, em Porto Alegre. Falou de medicina e, claro, contou a história de uma vida movimentada. Nascido em Gênova, de pai guatemalteco e mãe nicaraguense, publicou mais de 400 artigos.

Na entrevista a seguir, ele propõe uma espécie de revisionismo na relação médico-paciente especialmente devido à evolução tecnológica dos tratamentos:

Infância europeia

Apesar do nascimento na Itália, Castañeda cresceu na Alemanha. A família se mudou para Munique em 1935 e, quatro anos depois, não teve como deixar o país devido ao início da II Guerra Mundial. Por serem estrangeiros, enfrentaram dificuldades ? sem contar os ataques: em 1944, escaparam por pouco de um bombardeio aéreo. Após o conflito, Castañeda terminou os estudos em Saint Gallen, na Suíça. Mas o medo de nova guerra o levou a se estabelecer fora da Europa. Na Guatemala.

MELHOR ALUNO

Matriculado na Universidad de San Carlos de Guatemala (a única escola de medicina existente no país no início da década de 1950), Castañeda logo se destacou pela excelência acadêmica. A partir do segundo ano até a formatura, sempre conquistou o prêmio anual de melhor aluno de medicina. Fazia testes de cirurgia experimental cardíaca em cães, o que acabou se tornando sua tese de graduação. Formado em 1958, conseguiu residência em Minnesota, nos Estados Unidos, onde já se operava coração com peito aberto.

EXCELENTE PROFESSOR

A experiência de Castañeda à frente de Harvard e do Hospital Infantil de Boston foi compartilhada com outros médicos. Ele treinou pelo menos 40 profissionais que se tornaram chefes de unidades pediátricas mundo afora. Não à toa, integra 42 sociedades internacionais científicas. Também recebeu prêmios como a congratulação humanitária da Fundação Mundial do Coração, em 2004, e um Honoris Causa da Universidade de Marselha, em 2006.
(Ronaldo Bernardi/Agencia RBS)
A maioria das mães nem sabe que pode haver algo no coração do bebê. Ao dar a luz, alguém conta.
É um golpe enorme
Nasci na Itália e fui educado durante a II Guerra, na Alemanha. Estive pela primeira vez na Guatemala, com 20 anos. Meu pai nasceu lá. Então, fiz a escola médica na Guatemala. Eu lia os jornais profissionais americanos. Fiquei muito interessado pelo coração, o último órgão a ser explorado por cirurgiões. Na escola médica na Guatemala, fiz alguns experimentos com cães. E isso provavelmente me ajudou a ser aceito em Minesota. Acho que provavelmente algo da minha tese os intrigou por ser de alguém da Guatemala. De qualquer forma, preparei-me para uma carreira acadêmica, para pesquisar e ensinar. Consegui um PhD, virei professor assistente e professor. E, quando o chefe do Hospital Infantil de Boston se aposentou, selecionaram-me. Fiquei lá por 23 anos. Uma das coisas esplêndidas que fizemos foi operar corações de recém-nascidos. Fizemos muitos experimentos.
Retirei-me de Boston e fui para a Suíça. Depois de três anos, voltei para a Guatemala. Lá, vi que não havia nada feito para quem não pudesse pagar uma viagem médica aos EUA. Eram 2% da população com esse dinheiro. Os pobres não tinham chances de diagnóstico e tratamento. Então, organizamos uma Fundação (Aldo Castañeda), encontramos dinheiro e desenvolvemos um programa. Hoje, temos todos os tipos de cirurgia pediátrica cardíaca, e funciona muito bem. Fazemos de 400 a 500 casos por mês. Até agora, operamos 4,8 mil. Treinamos gente vinda de diferentes partes do mundo. Uma delas é a doutora Laura Barbosa, do Brasil (ela o acompanhou na Capital).
Foi em 1995. Vi que poderia ser útil trabalhando pro bono (sem honorários) e me dediquei a construir a unidade na Guatemala. Encontramos dificuldades. A América Latina é difícil.
Muito difícil, porque... Bem, o governo não estava interessado. Todos os prédios, equipamentos, mobília, tivemos de conseguir pela Fundação e por alguns filantropos da Guatemala. Arrecadamos cerca de US$ 4 milhões. Funciona bem, mas cobrimos somente cerca de 26% dos casos que deveríamos cobrir. Ainda temos um longo caminho. Não sei os dados do Brasil...
O ideal é diagnosticá-las o mais cedo possível. Nos seis Estados da Nova Inglaterra, capturamos 98% das crianças nascidas com problemas. Na Guatemala, só 26%.
A maioria das mães nem sabe que pode haver algo no coração do bebê. Ao dar a luz, alguém conta. É um golpe enorme. Eu sento, explico como se formam as malformações. O coração humano está formado ao final de dois meses de vida intrauterina. Qualquer malformação acontece neste prazo. Já no útero pode começar a haver dano. E muitos dos abortos espontâneos são por malformação congênita séria. A conversa com os pais depende do grau educacional deles. Tem de se moldar o trato. A maioria aceita. Eu tomava meia hora para falar. Fazia desenhos para entenderem a lógica. Só dizer que tem de operar é desumano. Este tipo de médico (que explica) não é abundante. Talvez abundem os menos humanamente preocupados com o paciente.
Em geral, as escolas de medicina seguem o passo da evolução da área. Por exemplo, na história da medicina se perdeu algum interesse. Talvez as escolas estejam um pouco negligentes. Deveriam enfocar mais a parte humana, da relação médico-paciente.
(Ronaldo Bernardi/Agencia RBS)
Recuperar a relação com o paciente. Claro, é preciso ser um pouco psicólogo. Cada um tem um jeito diferente. Um professor de matemática é diferente de um camponês, que tem menos educação. Alguns médicos têm mais talento, mais capacidade para isso. Por exemplo, tive experiências de ter feito operações muito grandes de coração, e outra por um câncer. E essa foi uma experiência muito importante porque, de repente, eu estava do outro lado, onde nunca havia estado. Aí, me dei conta de que existem outras deficiências, e as pessoas têm razão. Algumas delas são muito exageradas. Mas você têm razão: sim, perdeu-se a relação médico-paciente. Digo aos jovens que trabalham comigo que eles estão perdendo muito ao não responder às necessidades do paciente de conversar. É preciso entender o ambiente no qual se move o paciente, a relação da enfermeira, como ele é afetado. Ao mesmo tempo, aprende-se mais sobre a patologia.É como uma história de detetive, de certo modo. Pode haver muita vantagem em conhecer melhor um paciente.
(Ronaldo Bernardi/Agencia RBS)
Digo aos jovens que trabalham comigo que eles estão perdendo muito ao não responder às necessidades do paciente conversar
Há fotos de médicos sentados ao lado da cama do paciente. Isso, psicologicamente, é importante, mas não sabiam o que estavam dizendo. Ou não sabiam o diagnóstico. Aí, a medicina progrediu por tecnologia, diagnóstico e tratamento.
O médico perdeu sua posição por auto culpa e pelas circunstâncias.
A medicina se desumanizou um pouco. Estou de acordo com o seu pai.
 
 
Zh
 

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